Já faz algum tempo que a página Grow food, not lawns vem sendo a minha favorita no Facebook. Um misto de paz, otimismo e boas
intenções em um mar de caos, futilidades e ostentação que caracteriza a rede
social, talvez o preço que temos de pagar para ter acesso a ferramentas
importantes de descentralização de informação e aprendizado (pra quem quer...).
Mas a imagem que eu vi numa quarta-feira dessas pra trás foi um tanto
impressionante, mesmo para o alto nível de conteúdo da página, que se baseia em
uma proposição simples ao seu público de 500.000 curtidores de todo o mundo:
plante comida, não gramados.
Vista aérea de loteamento em Genebra, Suíça (46°12’N, 6°09’E).
Foto de Yan Arthus-Bertrand. Fonte: http://migre.me/dZY9w
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A primeira reação ao ver esta
imagem é simples de descrever: “P.Q.P., é assim que tinha que ser!!!”.
Vamos esquecer que estamos
falando da Suíça, imaginar que esse exemplo é perfeitamente replicável em
qualquer lugar do Brasil e tentar responder uma pergunta simples: quais as
vantagens de se ter uma cidade ou bairro planejados desta forma?
Em primeiro lugar, como o próprio
nome implica, a agricultura urbana traz um benefício explícito, a produção
local e descentralizada de alimentos. Isto significa dizer que as pessoas plantam
sua própria comida, ou boa parte dela, e não têm muitos problemas para
sobreviver ainda que estejam em épocas de crise (ou até desempregados). Com
toda certeza, podemos dizer também que a qualidade nutricional destes alimentos
será sensivelmente melhor, pelo simples fato de que quem planta o que vai comer o faz da melhor maneira possível, o que ninguém pode garantir quando a produção é feita por terceiros. Este terceiro pode estar cuspindo, urinando
ou pior - e mais comum - envenenando sua comida na tentativa de não perder uma
única folha da safra e maximizar o lucro. Ainda assim, na agricultura urbana,
você tem a opção de terceirizar essa produção: já pensou no lado mais romântico
de dar essa responsabilidade para seu(s) filho(s), desenvolvendo nele(s) de
forma definitiva um senso de responsabilidade e respeito à natureza? É
certamente benéfico - e divertido - para uma criança, fugir da televisão, da
internet e do videogame e conhecer o mundo real, ser responsável pelo jantar da
semana que vem, ver seu trabalho dando frutos, entender de fato de onde vem a
comida, criar uma conexão com o meio natural ao qual pertence (talvez os pais também estejam precisando dessas lições). Ainda, comer coisas realmente
saudáveis, plantar e colher flores, árvores, resgatar as sementes, plantar tudo
de novo no mês que vem.. Este trabalho terapêutico de poucas horas diárias pode
envolver muito mais, um idoso, os vizinhos, uma ‘gangue’ de crianças da rua e
do bairro, algumas crianças com necessidades especiais, um autista. E ainda vai
economizar uma grana pra família.
Pensando em uma escala maior, os
benefícios da agricultura urbana também podem ser maiores. Em um País como o Brasil,
que manda diariamente para lixões ou aterros, comida suficiente para alimentar 20 milhões de pessoas com as três refeições, uma simples composteira poderia resolver o problema da disposição final do desperdício.
Os resíduos orgânicos gerados no preparo ou no desperdício em casa seriam
mandados de volta para o ‘jardim’ e, reciclados, alimentariam as próximas
‘safras’, economizando no transporte de comida para os aterros e lixões, na
superlotação precoce destes e na decomposição de matéria orgânica em ambiente
anóxico, que gera gases de efeito estufa muito piores que o CO2.
Advém ainda deste cenário a possibilidade de que quem se preocupa com resíduos
orgânicos talvez se preocupe com resíduos recicláveis por uma simples mudança
de mentalidade, dando um fim (ou um novo início) adequado este tipo de material
(na página GFNL são ensinadas
milhares de maneiras de se reaproveitar estes materiais na própria horta, vale
dar uma olhada). O alívio na cadeia de resíduos da cidade e consequentemente no meio
ambiente podem ser extraordinários.
Dando um passo além e pensando
ainda em maior escala (ou menor, como preferem os geógrafos, já que o
denominador da fração é quem aumenta), a agricultura urbana representa também
um incremento de justiça social e econômica. Com a reforma agrária inacreditavelmente
empacada em países como o Brasil há décadas, essa atividade pode se transformar
em fonte alternativa de renda e levar à descentralização da produção de
alimentos, que tem causado genocídio (inclusive cultural), concentração de
renda, destruição ambiental e êxodo rural, aliados ao aumento do trabalho
escravo, característicos da agricultura industrial (o agronegócio). Ainda, as menores distâncias
entre produtores, agora na cidade, e consumidores, fortalecem os mercados
locais, contribuindo também para a distribuição de renda e diminuindo a
necessidade de transporte, notável poluidor e responsável por perdas
substanciais da produção. No mundo todo são crescentes as iniciativas de
criação de hortas comunitárias no lugar de praças abandonadas (ou praças de
esportes etc) em comunidades pobres,
e as vantagens nutricionais, ambientais e socioeconômicas desses modelos têm dado
ótimos retornos.
Mais uma olhada na foto aérea e
outras vantagens emergem, desta vez relativas ao planejamento do uso e ocupação
do solo. É praticamente inimaginável que uma chuva forte neste contexto resultará
nas tragédias previsíveis enchentes que vemos em todos os grandes e
médios municípios brasileiros; em primeiro lugar, o percentual de impermeabilização não deve chegar a 30%, permitindo a infiltração e o acúmulo da água no solo, minimizando os escoamentos superficiais; em segundo lugar, é bastante
provável que cada agricultor urbano capte e armazene a água das chuvas que
chega à sua casa, pois tem consciência de seu valor; e ainda, a diminuição do lixo
e da carga de sedimentos arrastados com os escoamentos aumentaria a eficiência
do sistema de drenagem do município. Na realidade brasileira, podemos citar o
exemplo da impermeabilização da Macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana
da Cidade de São Paulo (Figura abaixo), onde os percentuais de impermeabilização chegam a 84%, tornando inevitáveis as enchentes
que assolam a região metropolitana da cidade. As soluções megalomaníacas mágicas emergenciais
(e caras!) propostas variam entre a criação de crateras gigantes de
armazenamento da água (!!!) e desassoreamento do Tietê (leia-se aumento da
calha) pra tentar compensar a imbecilidade e o desleixo na organização espacial
da cidade, enquanto o problema real continua sendo ignorado.
Tragédia anunciada: distribuição espacial da percentagem de área impermeável dos distritos da zona urbana de São Paulo no começo da década de 2000. Fonte: http://migre.me/dZVlN |
Pensando ainda neste contexto, é
possível visualizar corredores ecológicos sendo formados nesta configuração de planejamento
urbano, especialmente se mantidas APPs e Reservas urbanas (um Parque, por
exemplo). Neste sentido, uma matriz intransponível no modelo atual brasileiro pode
se transformar em local mais propício ao estabelecimento e deslocamento de
espécies animais e vegetais, melhorando fluxos gênicos e a conectividade entre
populações, que de outra forma estariam isoladas e mais vulneráveis.
Esta nova configuração resultaria
em aumento da qualidade ambiental e de vida, tornando as cidades menos cinza,
mais harmoniosas e mais vivas. A educação ambiental propiciada pelo contato com
a terra, o cuidado com o lixo e a convivência com as áreas verdes, aliada à responsabilidade
socioambiental na produção local de comida, elevariam o senso de responsabilidade
e solidariedade das pessoas. A menor necessidade de dinheiro, o maior (e
melhor) contato com os filhos e vizinhos, a existência de vida fora de casa e o real aproveitamento do tempo livre (que talvez aumente) também contribuiriam para o
aumento da felicidade das pessoas. Tudo isto em um contexto mais saudável, mais
limpo e mais sustentável.
Talvez demoremos a atingir este
ponto, mas o primeiro passo pode ser dado por qualquer um, em qualquer lugar. Este
texto é meu primeiro passo, o próximo quem sabe será um quintal como o da foto abaixo,
onde todos possam ajudar e/ou pegar os alimentos que quiserem. Seja você também
mais solidário, mais humano, mais vizinho, mais amigo, mais pai, mais filho, mais feliz. Grow food, not lawns.