domingo, 15 de julho de 2012

RIOS DE INCOERÊNCIA



Depois de uma semana de um luto bem curtido (talvez seja assunto por aqui em breve, talvez não), algumas leituras oportunas voltaram a despertar certos pressentimentos catastróficos que povoam a mente de qualquer biólogo bem informado nos tempos modernos. Não pretendo dar ao blog um ar de Jornal da Alterosa e nem pretendo dar voz ao radicalismo verde que enfraquece a argumentação em defesa das causas ambientais - mais por ingenuidade do que por falta de boas intenções - mas não dá pra debater o futuro dos rios brasileiros sem ser pessimista. Se a situação atual já é catastrófica, a situação projetada para médio prazo, com todas as iniciativas do executivo e os ataques à regulamentação, que já anda meio mal das pernas, promovidos pelo legislativo, a tendência é que haja piora significativa (eufemismo). Antes de começar a projetar o futuro, devemos ter em mente algumas considerações acerta do status atual das bacias hidrográficas brasileiras.

Em primeiro lugar, o que você encontra em qualquer portalzinho meia boca, ouvia da sua professora desde os 5 anos e provavelmente ficou fascinado em saber: o Brasil tem 12% da água doce do planeta e dois dos maiores aqüíferos do mundo. Talvez tenha lido um pouco mais sobre o assunto e sabe que o Brasil tem a maior diversidade de peixes do mundo, e se for um cara muito bom como o Manconi ou o Pronzato vai saber que até em espécies de esponjas dulcícolas o Brasil é fodão, com pelo menos 25% das espécies da Terra, 94% delas endêmicas, segundo dados de 2007: pra não complicar a cabeça e não perder o foco, não vamos discutir o quanto um país subdesenvolvido de dimensões continentais e desprezo à pesquisa conhece da totalidade de suas espécies de esponjas de água doce num dos cantos mais aguados do planeta. O fato indiscutível é que temos o potencial pra sermos os maiores do mundo em tudo que se refere à água, segundo os conhecimentos científicos produzidos até o século XXI.

Na prática é diferente. A relação do povo brasileiro e principalmente do governo brasileiro com as bacias do país - e a Mata Atlântica, e os animais, o mar, os solos (...) - é mais ou menos a relação de um cafetão com a sua(s) puta(s) – é sério, um amigo meu tem um amigo que conhece muito bem o submundo do amor e me contou. O governo nas três esferas de poder é o culpado óbvio, por ser ele o implementador (e fiscalizador) de medidas de comando e controle e pelo estabelecimento (e fiscalização) dos instrumentos econômicos que vão gerir a relação da sociedade com o ambiente, de forma geral. Na maioria dos casos, portanto, é culpa direta do governo, por ação ou inação, que o agricultor destrua os rios de sua propriedade (e da propriedade alheia) com agrotóxicos; que as cidades despejem dejetos com variados níveis de contaminação em suas águas (e na dos próximo), não necessariamente de forma clandestina; que milhares percam tudo pras previsibilíssimas enchentes e desmoronamentos que assolam todo o país, todos os anos. Todas essas correlações não são tão óbvias assim, e serão matéria de discussão por aqui nos próximos meses. Mais uma vez, a moral da história é que a posição negligente (dolosa?) do governo com os recursos naturais do País leva a catástrofes ambientais – e sociais – no país mais abençoado do mundo, ou pelo menos o foi, entre os anos 6.000.000.000 a.C. e 1.499 d.C..

Mapa de 2002 com os empreendimentos hidrelétricos alterando
profundamente os cursos d'água do sudeste brasileiro: naquela
época, já era difícil ver São Paulo. Fonte: Aneel
Mas indo direto ao ponto, o que já era ruim vai certamente piorar. Curiosamente, – apesar de não ser mais que obrigação – uma das principais bases de dados que denuncia o status das bacias brasileiras vem da autarquia federal que tem os grandes poderes de regulamentação do setor. O Panoramada Qualidade das Águas Superficiais – 2012  lançado a menos de um mês pela Agência Nacional de Águas, revela que 47% das águas inseridas em áreas urbanas já são ruins ou péssimas. A maioria dos rios brasileiros está em boas condições por serem inacessíveis, mas o governo Lula/Dilma vem tratando de derrubar a fronteira Amazônica a pancadas, já tem um tempinho. Os PACs preveem a construção de dezenas de hidrelétricas, sustentadas mentirosamente como energia limpa pelo governo brasileiro. Já em 2009, Lula foi aplaudido ao fazer um discurso carregado de hipocrisia, que soa curiosamente contrário à indicação de usinas hidrelétricas como fonte de energia limpa. No discurso, Lula cita o exemplo de Balbina (veja o link, é uma história incrível), uma aberração hidroelétrica como nunca houve na história desse país e provavelmente dessa galáxia, enquanto planejava abertamente um plano complexo de redução de Unidades de Conservação e destruição dos rios amazônicos por megausinas. Os barramentos em série planejados pelo governo ameaçam a maravilhosamente imensa variedade de peixes migradores do Brasil, cujas desovas são depositadas nos megarreservatórios e facilmente predadas, impossibilitando a reprodução destes a longo prazo – vale lembrar que esses animais têm grande porte e vida longa, e quando as notícias dos efeitos catastróficos sobre eles chegarem, os responsáveis já não mais terão responsabilidade, como em muitas coisas no País. Em Minas Gerais e no sudeste brasileiro quase não existem trechos lóticos nas bacias (Figura 01), e fazendo uma analogia simples, grandes reservatórios estão para grandes espécies migradoras brasileiras como uma área de pastagem está para uma população de primatas arborícolas. 
Animais como o bagre e como a perereca de Lula são símbolo do desprezo ambiental que é empurrado guela abaixo de uma pequena parcela de pessoas bem esclarecidas – incluindo os técnicos do IBAMA, cuja opinião não interessa – em discursos pautados pela desinformação, pela dissimulação e pela mentira.

O analfabetismo funcional e a ignorância ecológica do ex-presidente parece ter se disseminado por transmissão vertical quando resolveu parir outra aberração ecológica: Dilma conseguiu completar 18 meses sem criar uma Unidade de Conservação sequer enquanto era conivente com a retalhação do Código Florestal. Simultaneamente, promulgou a MP 558 que retira 86 mil hectares de UCs para dar lugar a 4 megausinas hidrelétricas, em sintonia com os anseios dos grandes financiadores de sua campanha, que terão bilhões pra torrar (na verdade, fazer o que quiser) em suas empreitadas.

Exatamente no novo CF se espera a destruição mais profunda da qualidade das águas brasileiras. A figura da mata ciliar como Área de Proteção Permanente foi severamente comprometida, o que na prática limita muito a proteção que estas exerciam na contenção de encostas e poluentes. É um consenso antigo na comunidade científica que o lixiviamento de agrotóxicos, metais, lixo e diversas outras formas de contaminantes é grande em épocas chuvosas e especialmente preocupante em rios onde não existe vegetação marginal. Nesse contexto, também são comuns as mortes e os prejuízos em áreas urbanas de todo o país pelo desmoronamento de barrancos desmatados e com construções irregulares por ação de chuvas previsíveis. É esperado, portanto, que com o esculhambamento da figura das matas ciliares, tanto pela anistia aos desmatadores, passando pela redução da área a ser preservada – que será insignificante na maioria dos casos – e até pela permissão de replantio com espécies exóticas, o carreamento dos agrotóxicos amplamente utilizados (e subsidiados) e de inúmeros outros poluentes e sedimentos aumentará significativamente, piorando a já desgraçada situação das águas brasileiras. Reparem que não entrei no mérito da perda de biodiversidade, alterações microclimáticas, alterações no fluxo de vazões dos cursos d’água, destruição de corredores ecológicos e afins – apenas tratei superficialmente da qualidade de águas. Para informações complementares sobre matas ciliares você pode clicar aqui, aqui, aqui e aqui. Não é profecia, é ciência.

Mas todo mundo sabe que desgraça pouca é bobagem. Um último e menos propalado ataque que eu gostaria de lembrar aqui vem do legislativo, mais uma vez denunciando o abismo que separa a política da produção científica, por iniciativa dos ‘representantes do povo’. Não bastasse os projetos de transformação de rios espetacularmente lóticos e cheios de vida em lagoas podres e pobres em nome de um suposto desenvolvimento, o nobre deputado Nelson Meurer (PP-PR) - que ganhou fama por jogar paciência durante uma sessão do plenário, é alvo de investigações por tráfico de influência, corrupção e formação de quadrilha e outro dia soltou em uma entrevista que “se a Dilma não soltar a grana, a gente não vai colocar em votação os projetos que o governo quer aprovar” – apresentou na Câmara o Projeto de Lei (PL) 5989/09. Sua proposta, após sofrer alterações no curso de sua tramitação na casa, é de incentivar a criação de espécies de peixes não-nativos em tanques–rede, equiparando-os às espécies nativas do curso d’água. Cabe ao Ministério da Pesca e Aquicultura determinar que espécies exóticas se enquadram  na deliberação, não sendo necessário verificar se a espécie já é previamente estabelecida na bacia. O PL ainda retira do aquicultor a responsabilidade de contenção dos espécimes e a prevenção de que escapem dos tanques e invadam a bacia.

Quem conhece um pouco de conservação sabe o tamanho do problema que o PL constitui. Invasões de espécies exóticas são atualmente a terceira maior causa de extinções no mundo, atrás de perdas de hábitat e caça/coleta predatórios e, no caso específico de peixes de água doce, a aquicultura é responsável principal por invasões biológicas, com bacias inteiramente infestadas em longo prazo. É teoricamente possível mas praticamente impossível evitar escapes de espécimes criados nesse modelo, assim como é impossível na prática eliminar espécies exóticas invasoras após seu estabelecimento. No reservatório de Barra Bonita, no rio Tietê, monitoramentos da pesca profissional entre 1991 e 2006, mostram que o incremento, nos desembarques, da tilápia - uma das grandes invasoras das bacias brasileiras - se deu em detrimento das espécies nativas (AES Tietê, 2007 apud LIMA JÚNIOR et al., 2012 - mando o pdf pra quem quiser). Em curto e médio prazo, o escape de animais com alto potencial reprodutivo e dispersor, favorecidos pela presença de grandes reservatórios onde não deveria haver, tendem a suprimir a fauna local, alterar a qualidade da água, introduzir parasitas e extinguir espécies que muitas vezes apresentam grande potencial comercial, mas baixo desenvolvimento tecnológico para produção em cativeiro. Nesse sentido, é paradoxal imaginar um país com uma extraordinária variedade de peixes incentivar a introdução de espécies notadamente causadoras de desastres ambientais e de qualidade comercial inferior.

A importação de pacotes tecnológicos e espécies mostra – tanto nesse caso como na agricultura, na silvicultura, na geração energética e em tantos outros exemplos – o profundo desprezo das políticas públicas brasileiras pelo incentivo à pesquisa e o desenvolvimento de tecnologias nacionais que valorizem os produtos do Brasil e respeitem os aspectos socioambientais. Programas de manejo de espécies nativas na tentativa infrutífera de salvá-las da extinção por conta da voracidade incontrolada do setor hidrelétrico mostram que não é impossível a criação das espécies brasileiras em tanques, apesar dos pesares: falta um pouquinho de vontade política em experimentar e ampliar essas iniciativas. Mas a herança maldita do governo militar em crescer, crescer e crescer a qualquer custo impossibilita a boa vontade política, que, na teoria, traz menos votos. A premissa de que crescimento é igual a desenvolvimento continua em alta no ‘país de todos’, ao mesmo tempo em que o modelo utilizado como referência entra em colapso no hemisfério norte e os indicadores de desenvolvimento humano brasileiros continuam nos patamares de sempre. Passou da hora de a sociedade brasileira entender e cobrar um modelo de desenvolvimento verdadeiramente pautado nas demandas da população brasileira: promover igualdade social não passa por distribuição de esmola e bolsas em universidades de nível duvidoso. Desenvolvimento social, no Brasil, passa pela exploração equilibrada e ambientalmente correta da abundância de recursos naturais, educação de qualidade e uma reforma agrária profunda.