quinta-feira, 9 de março de 2017

Entrevista: Deputados Amazonenses não têm o tamanho da Amazônia

Na última sexta-feira saiu uma ótima reportagem do Amazônia Real sobre as UCs que Padilha et al. querem desafetar no sul do Amazonas, com alguns comentários meus. Agradeço a Elaíze Farias pela oportunidade. Quem quiser dar uma olhada só seguir o link. Falei do despreparo dos deputados amazonenses em entender o melhor caminho para aproveitar a floresta, e também da importância da permanência das UCs na região.

Neste post vou disponibilizar a íntegra das opiniões e informações que preparei para a reportagem, em uma análise expandida dessas questões. Segue:

Sobre a atuação da bancada do Amazonas e seus reais interesses

A opinião dos parlamentares do Amazonas é de quem desconhece as potencialidades e as riquezas do próprio estado. O que eles chamam de produção é uma visão ultrapassada de desenvolvimento. O grande potencial do estado do Amazonas reside no que o faz único no planeta, a sua biodiversidade e a cultura de seus povos tradicionais. Assim, se o estado tem algo que pode colocá-lo na vanguarda do desenvolvimento nacional e uma referência no mundo, em um momento em que urgem alternativas sustentáveis ao modelo vigente, é aliar seu patrimônio natural e o conhecimento acumulado sobre ele. Me refiro a duas coisas: a prospecção de moléculas e fármacos e no desenvolvimento  de novas tecnologias a partir dos recursos naturais únicos que o Amazonas abriga; e, claro, aos serviços ambientais que há muito tempo suas florestas produzem e que sustentam as atividades econômicas do país e de várias regiões do mundo. O Amazonas é um grande “produtor” de água, chuvas, estabilidade climática, ar puro, polinizadores, madeira, frutos, enfim, incontáveis serviços que só se gera em um ecossistema bem preservado.

Quando um representante deste estado, ou quase todos eles juntos, vêm articular políticas públicas que potencialmente trocam estes inestimáveis serviços por um modelo de produção predatório, devastador, uniformizador, onde poucas pessoas lucram, isso só diz o quanto eles não estão preparados para representarem o que é de fato o Amazonas.

Eles deveriam se unir para pensar em formas de alavancar o desenvolvimento do estado a partir da pesquisa e da inovação, do turismo ambiental e, principalmente, do reconhecimento dos serviços ambientais pelo resto do país e do mundo. Deveriam pensar em como o estado pode capitalizar sobre estes serviços que oferece e que são imprescindíveis à agricultura, às cidades, ao centros urbanos, à matriz energética e demais atividades econômicas do Brasil. Ou em como atrair pólos de desenvolvimento tecnológico, pesquisa e inovação, como incentivar que os produtos da floresta sejam conhecidos e consumidos país afora. É essa a resposta que o mundo espera do Brasil hoje, diante do colapso do clima, dos recursos naturais e dos povos tradicionais: saber usar o seu potencial.

No contexto deste imbróglio, especificamente, creio que não deveria nem haver essa discussão, esta retórica desenvolvimentista não faz sentido por dois motivos: i) três das UCs que estão sendo alteradas - as duas Florestas Nacionais e a Área de Proteção Ambiental - já permitem o uso produtivo da terra. Sua existência é compatível com a produção de madeira, alimentos e gado, desde que sigam restrições elencadas nos planos de manejo das UCs, que visa assegurar que não haja perdas ambientais significativas nestes processos e garantem uma produção mais sustentável; e ii) as terras em que foram criadas as UCs pertencem ao Ministério do Meio Ambiente, e não a produtores locais. Como é que eles imaginam que, com a retirada das UCs, elas se tornariam “produtivas”? Só se elas deixassem de ser do Ministério por algum ato posterior do governo, o que tornaria a situação ainda mais aberrante.

No fim das contas, é uma falsa disputa de “áreas produtivas x áreas preservadas”, a existência das UCs não está ocupando lugar de terrenos produtivos, apenas dando uma finalidade a terras que já são de posse do Ministério do Meio Ambiente. Os parlamentares amazonenses nesse sentido, são iguais aos do restante do Brasil: profundamente ignorantes  em temáticas ambientais e de desenvolvimento sustentável, despreparados para os desafios deste século.

Importância da presença das UCs na região

Estas UCs são parte fundamental de um grande projeto que visa formar uma barreira ao desmatamento. Esta estratégia foi bem sucedida nas fronteiras leste e sudeste da Amazônia e foi um dos fatores preponderantes para a queda em cerca de 80% do desmatamento da Amazônia brasileira entre 2004 e 2010. A presença de UCs evitou que as terras fossem ocupadas e freou a progressão do agronegócio vindo do Nordeste e Centro-Oeste brasileiro. O sul do Amazonas é hoje a mais ativa fronteira agropecuária do estado, e as cidades que abrigam as 5 UCs em disputa são protagonistas neste processo, responsáveis por mais da metade do desmatamento amazonense nos últimos anos.

Como é amplamente repercutido, a reconstrução da BR-319 e de uma rede de ramais que o projeto prevê, como a AM-366, vai abrir acesso fácil a alguns dos blocos de floresta mais protegidos da Amazônia, no norte e no extremo oeste brasileiro, e ao riquíssimo corredor florestal existente entre os rios Purus e Madeira (interflúvio Purus-Madeira). Esta região tem uma das maiores taxas de riqueza de espécie de toda a Amazônia e ainda hoje é palco do descobrimento de espécies mesmo em grupos bióticos já muito bem estudados, como mamíferos e aves. Está, em grande parte, intacto por seu isolamento. Estima-se que cerca de 90% do desmatamento na Amazônia ocorra a menos de 25km de estradas.

As UCs em disputa são cinco dentre mais de vinte criadas na região de influência da BR-319, e se localizam a 200km de distância desta, cobrindo o lado direito (norte) da rodovia transamazônica (BR-230). A transamazônica é notória indutora de ocupação e desmatamento na Amazônia, e nesta região saem dois ramais que a conectam à BR-319: a BR-174, vinda de Vilhena/RO, e a AM- 174. Assim, a presença das UCs ajuda a fechar uma brecha no arco do desmatamento e aumenta a proteção em ramais que tendem a ser reativados caso a BR-319 volte a ser plenamente transitável. Vale lembrar que a rodovia foi praticamente abandonada desde a sua criação, na década de 70, devido aos altos custos de se manter uma estrada em uma floresta tropical. E que ainda hoje discute-se a sua necessidade, devido ao baixíssimo custo do transporte hidroviário pelo rio Madeira, que faz praticamente o mesmo percurso. O uso mais intensivo de toda a rede rodoviária do sul amazonense tende a aumentar os deslocamentos regionais perto das novas UCs e, na ausência destas, aumentar as ocupações e a pilhagem de recursos naturais.

Isso é ainda mais preocupante em uma escala maior quando se considera a conexão com o trecho da BR-174 entre Manaus e Boavista, que vai até a fronteira norte de Roraima, o que na prática divide a Amazônia ao meio em sentido norte-sul, de Porto Velho/RO a Paracaima/RR. Caso isso não seja feito de forma planejada, cria-se uma cicatriz de mais de 2000 km de extensão, que tende a se tornar vetor de desmatamento para leste e para oeste a partir do centro, fragmentando definitivamente a massa florestal e abrindo caminho para a exploração de todos os locais que hoje são inacessíveis. De acordo com modelagens climáticas recentes do professor Antônio Nobre, isso poderia ser catastrófico para o regime de chuvas de todo o país e para a conservação de muitas espécies, processos ecológicos e serviços ambientais.