quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A minha relação com Veja

Se tem uma sensação que não deve ser muito agradável, de acordo com o que tenho (tinha) visto na TV, é aqueeela sensação de inchaço. Aquela sensação que de tão desagradável leva a amiga - que encontra a outra no supermercado, após de um longo período de relacionamento remoto - a perguntar de cara: amigaa, como vai esse intestino?! Eu sou particularmente abençoado com o tal reloginho no lugar do intestino e nunca tive que ouvir essa pergunta - até porque o time do Galo caindo pelas tabelas é a primeira coisa que as pessoas pareciam ver na minha cara ao longo de toda a minha adolescência – mas desconfio que essa bênção é muito menos divina – ou genética – do que ela parece ser.

Desta vez eu vou aceitar a sugestão.
Voltando um pouquinho no tempo até mais ou menos onde vai a consciência sobre a confiabilidade do meu sistema digestivo, me vem a lembrança da época exata em que comecei a ler a revista Veja, lá pro final do ensino fundamental:

- Assine uma revista e estude atualidades ou então vai tomar pau no vestibular! – profetizaram meus professores. Em seguida o pessoal lá de casa, na melhor das intenções, tratou de assinar a revista "mais vendida", como se fosse prova irrestrita de qualidade. Alguns anos mais tarde eu passaria no vestibular com uma boa nota na redação e provavelmente com uma contribuição pífia de Veja. Mais provável ainda é que, tendo levado um pouquinho mais a sério a “revista”, eu teria desistido de tentar o curso mais bonito que a humanidade foi capaz de inventar, o estudo da vida.

Mas não vou negar que Veja teve um papel importante na minha formação. Depois de desenvolver um pouquinho mais o senso crítico e assistir alguns dos mais experientes e competentes cientistas do País (às vezes do mundo) dentro da sua sala de aula, você começa a entender o motivo de eles, tendo formulado a prova do vestibular – isso ainda existia! – não terem dado muita bola pros assuntos tratados na revista.  Posso dizer que depois de ter contato íntimo com artigos científicos de revistas de referência mundial escritos pelas maiores cabeças do planeta ao longo da história, você começa a entender o porque de aqueles graficozinhos parecerem estar torturando as estatísticas pra te convencer que o MST é "contra o interesse da nação". Talvez possa afirmar ainda que o meu trauma com a superficialidade das mais diversas reportagens, resumidas ao máximo pra caber no esqueminha de páginas "propaganda de banco e carro sim, propaganda não" tenham tornado minha escrita detalhada e às vezes prolixa – mas o menos vazia que eu puder tentar. O fato é que o mau exemplo de Veja, se tomado com moderação, pode desenvolver muito mais o senso crítico do que você é capaz de imaginar.

Neste contexto, ao longo da minha graduação, a relação de quase gratidão e de desprezo se aprofundaram bastante. Quase gratidão pela perseguição implacável, às vezes imoral com o (des)governo Lula e PT, ainda que pelas vias tortas. Não que eu seja conivente com a imoralidade, muito pelo contrário; ainda que o Lula mereça, imoralidade não combina com justiça. Mas um governo que trata levianamente a corrupção e o bem comum com uma política de compra indireta de votos em programas mitigatórios e de vida curta precisa de uma oposição dura e ativa, e talvez a Veja represente esse papel. Por outro lado, à exceção da fantástica Isabela Boscov, não há nada mais a ser aproveitado na redação, nas pautas, na linha editorial e nos recursos humanos da revista: logo, nesta época de desastres ambientais, meu desprezo supera, de longe, a minha gratidão.

Podemos tomar como exemplo a discussão do Código Florestal: a revista lançou mão de seu desinteresse com o jornalismo sério e publicou uma reportagem entitulada "Preserve-se o bom senso", onde acusou, de uma tacada só, ambientalistas, ONGs, estudantes e os maiores especialistas do País em meio ambiente, agricultura e ordenamento do uso do solo, de "ecoxiitas" contra o Progresso do Brasil. Atacou a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e a Academia Brasileira de Ciências, cujos cientistas assinaram um documento de mais de 200 páginas baseado em séculos de pesquisa e décadas de experiência explicando tintim por tintim porque a revisão da legislação, como proposta, representava uma catástrofe. Atacou mais de 500 insituições da sociedade civil que, juntamente com 1,5 milhão de brasileiros, repudiaram um código florestal feito por parlamentares, muitos deles corruptos, outros tantos semi-analfabetos, mais um bucado com o rabo preso e todos legislando sobre um assunto que desconhecem profundamente.

Greenwashing clássico: criança, negro e alusão à defesa do meio ambiente. 
"Indispensável para a revista que queremos fingir ser". (site Almapbbdo)
Se alguém aí tem estômago forte pode procurar a opinião do super time de especialistas em agricultura sustentável da revista – o que inclui a miss desmatamento, senadora Kátia Abreu, o doente mental cientista político Reinaldo Azevedo (argumentação impagável) e ainda – concluí aos 15 anos – algumas dúzias de pseudojornalistas (e pseudocríticos) que se sujeitam a um jornalismo de quinta provavelmente desesperados por alguma estabilidade em uma carreira para a qual não têm muito talento: aquiaquiaquiaquiaqui...

Poderíamos ainda perder algum tempo argumentando sobre os artigos de conteúdo preconceituoso contra homossexuaisíndios, outros índios e mais índios; em favor de agrotóxicos "pelo bem da sociedade brasileira" [te lembra alguma coisa?]; criminalização de movimentos campesinos nacionais; e milhares de outras que semanalmente se empenham em uma lavagem cerebral sobre seus desafortunados leitores de classe média que provavelmente trabalham 44h/semanais e têm pouco tempo de exercitar o senso crítico – quando não o creem estar fazendo ao ler “a maior revista do País”. Ou poderíamos completar o raciocínio falando da postura direitista cega e conservadora da revista que se presta a fazer oposição por fazer, como no congresso: tudo que o governo faz está errado e tudo que soa razoavelmente socioambiental é lulista é “esquerdista” (consideração: creio ser mais fácil a Kátia Abreu comer da soja transgênica que os escravos do seu irmão ela planta do que o Lula ter alguma – qualquer uma – inclinção ambiental). Contraditoriamente, se a situação aprova os projetos do governo apenas porque é da situação – o que de fato é um disparate - é um escândalo.

A postura hipócrita e mal intencionada da revista me lembra o senador (tucano) da República por São Paulo Aloysio Nunes, durante a discussão do Código Florestal, quando revoltado com o fato de ambientalistas estarem gritando impropérios contra os senadores nas galerias do Congresso Nacional, saiu pelas galerias do Congresso Nacional gritando impropérios contra os ambientalistas. Aloysio, por ser oposição, provavelmente receberia o respaldo da revista (não encontrei menção ao fato no site de Veja). Posteriormente, por email, seu chefe de gabinete utilizou Winston Churchill para justificar-se comigo sobre o porque de o senador chamar os manifestantes de “seus merdas”: “(...) A democracia é o pior regime, exceto todos os outros. (...) Continue vigiando e nos ajudando a fazer o mandato do Senador Aloysio Nunes Ferreira cada vez mais alinhado com os eleitores de São Paulo”.

Ser ou não ser? (site Almapbbdo)
Chegando aos finalmentes, cito Mariana Alves Campos, que fez um estudo da evolução da temática ambiental na pauta da revista, e diz que a abordagem do passado era diferente. Se atualmente as reportagens são baseadas em uma suposta “análise equilibrada” restrita aos temas da moda nas relações entre economia e do meio ambiente – Rio+20, Código Florestal, Efeito Estufa, Matriz Energética, Lixo etc  – nas décadas passadas a postura era abertamente antiambiental em reportagens bastante raras. Se isso era pior do que a mentira e a desinformação que hoje são praxe, eu duvido; é melhor um inimigo que um amigo traíra. Mariana sugere sutilmente que a revista mude sua linha de análise ambiental de "modismos (temas como Rio-92 e desenvolvimento sustentável, na década de 90, e mudanças climáticas, em 2007) e/ou da valorização do caótico (notícias sensacionalistas, impactantes" para um jornalismo de mais valor, que seria "noticiar o que é considerado relevante social e coletivamente".

Não conheço Mariana Alves, mas já a admiro por seu otimismo.

Creio que posso poupar os leitores dos detalhes mais específicos da minha relação com Veja e os motivos que me levaram a finalmente substituir a leitura da revista que, para qualquer emergência, continuará sempre ao alcance da mão desde o vaso sanitário. Mesmo aqueles que têm uma dieta saudável e um intestino bem regulado, de vez em quando precisam de um empurrãozinho. E pra esses momentos - até o dia em que eu voltar às fraldas e não importar mais o fato de ter o reloginho programado pra cada 24 horas - a Veja continuará sendo, como sempre foi, indispensável.

ps. a não ser, veja bem, que o churrasco do dia anterior tenha sido regado a Itaipava...