sábado, 24 de junho de 2017

Não existe floresta grátis

Esta casa pertence a uma holandesa e estava no caminho do inacreditável incêndio de Portugal. Enquanto todo mundo perdeu tudo, vida, família, casa, bens, esta senhora perdeu praticamente nada. Escreveu no Facebook que ia pra varanda tomar uma cerveja após voltar de mais um funeral.

Liedewij Schieving salvou o que tinha porque manteve árvores nativas ao redor de sua casa em uma espécie de sítio agroflorestal chamado Quinta da Fonte, ilhada em meio a um mar de eucaliptos.

Eucaliptos são nativos da Austrália e foram largamente plantados nas montanhas portuguesas, como se faz no Brasil, ao mesmo tempo em que o país vivenciava um grande êxodo rural, como se faz no Brasil. Resultado: imensos eucaliptais, com muita matéria orgânica seca sobre o solo, sem manejo, sem cuidados e sem ninguém por perto pra se preocupar, já que quem planta eucalipto só aparece de 8 em 8 anos pra fazer dinheiro rápido. Bem rápido mesmo. Difícil até saber o que é mais rápido, o dinheiro ou a pressa deles em ir embora dali.

Os eucaliptos têm outro agravante que é a produção de uma resina inflamável, o que lhes dá a capacidade de, como descreveram os inúmeros relatos de portugueses, fazer labaredas saltarem por sobre os vales, de uma montanha a outra. A imensa maioria das espécies nativas não têm esse 'problema', que de qualquer forma é diluído em uma floresta saudável e com alta diversidade. Como a lógica indica, também são mais bem adaptadas ao clima local e, portanto, mais resilientes. A maioria das árvores do sítio não queimou - da mesma forma que blocos preservados de Amazônia não pegam fogo - por causa das espessas e volumosas folhas de suas copas e do bolsão de umidade mantida pela brava fileira de carvalhos, castanheiras, oliveiras e sabugueiros.

Não tem erro gente. Não tem erro, não. Se mete a manejar áreas nativas com base no que é mais fácil, mais rápido, mais barato, e pague um preço alto lá na frente. Respeite o ecossistema nativo, os bilhões de anos de evolução deste planeta e o conhecimento científico já acumulado pela humanidade e evite tragédias anunciadas sem nem tomar conhecimento que elas poderiam ter ocorrido.

Serve pra eucaliptal, pra monocultura de soja, pra mega-barragens em rios, não importa. Os serviços prestados pelo meio ambiente são que nem um PF na hora do almoço no restaurante da esquina:

ELES NÃO EXISTEM GRÁTIS

Postado originalmente (com grande repercussão) no Facebook.

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Animação mostra os impactos ambientais de estradas na Amazônia

Veja como a degradação florestal, a extração de madeira e os focos de incêndio na Amazônia estão intimamente relacionados à presença de estradas, que permitem o acesso a locais anteriormente remotos da floresta.

Veja a relação entre degradação ambiental, retirada de madeira e focos de incêndio na Amazônia com a presença de estradas.
Fonte dos mapas: http://florestasilenciosa.ambiental.media/

Se você pausar o GIF nos focos de incêndio florestal, por exemplo, consegue ver claramente o traçado da rodovia transamazônica. Esta corta o coração da Amazônia brasileira de nordeste a sudoeste e se encontra com a BR 163, vinda do Mato Grosso, bem no centro do mapa. Um pouco abaixo dessa confluência, às margens da estrada, estão unidades de conservação como a Floresta Nacional do Jamanxim que estão sendo tomadas por grileiros e que deverão ser destruídas por Temer e a bancada ruralista. A ocupação é obviamente induzida pela rodovia. Também podem ser vistos vários pequenos focos de incêndio ao longo do rio Amazonas, outra via importante de transporte.

Outro ponto que chama a atenção é a BR 319, de Manaus a Porto Velho, no centro-oeste da Amazônia. Há muito pouca degradação ambiental no entorno da rodovia porque ela não é asfaltada e está em condições precárias. O projeto de asfaltamento sofre firme resistência do IBAMA e de especialistas e há uma clara tentativa de atropelar o licenciamento ambiental e apressar a obra, como é praxe do nosso governo, o que fatalmente abriria a última fronteira de desmatamento no intacto - pois isolado - bloco de florestas do oeste brasileiro.

Tirei os mapas do belo projeto do http://florestasilenciosa.ambiental.media/

Postado originalmente no Facebook.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

O tiozinho da Embrapa atacou de novo

Tô aqui embasbacado com o "artigo" do intrépido tiozinho da Embrapa, Evaristo de Miranda, publicado no Estadão (http://bit.ly/2tdcM1k). Ele assinou com caps lock no fim "CHEFE GERAL DA EMBRAPA MONITORAMENTO POR SATÉLITE". Não lia nada tão ruim desde o prefácio do PL que alterava o Código Florestal, de autoria do Aldo Rebelo. É sem dúvida um grande feito (que achei pelo ótimo ClimaInfo).

Não me refiro aos incontáveis erros de concordância ou à, digamos, ousada aplicação de pontos de exclamação, parênteses e reticências ao longo do artigo. O que escandaliza é a desonestidade com os dados, a absoluta ausência de rigor científico e a deliberada distorção de números, fatos e estatísticas pra ludibriar leitores leigos.

O título já é audacioso: "Agricultura lidera preservação no Brasil". Qualquer pessoa mais ou menos bem informada já sabe que vem por aí uma cruzada anti-ambiental pautada no falso antagonismo entre produção e preservação; e que o texto invariavelmente vai falhar na sustentação de tão audaciosa sentença.

É o que acontece: primeiro Evaristo cita que o Brasil tem 13% do território em APs (áreas protegidas, ou seja, unidades de conservação + terras indígenas, segundo a definição que ele parece ter usado aqui), quando tem pelo menos o dobro (http://bit.ly/2td7MJV). Depois ele afirma que a área de reserva legal protegida nas propriedades rurais (20,5% segundo ele) é maior que a área das APs (13%) porque é 20 é maior que 13, sem citar que 20 se refere apenas a área somada das propriedades rurais (ou seja, 410 milhões de ha) e que 13%, que na verdade são 27%, se aplicam sobre toda a área do país (851 milhões ha); matemática básica, as áreas protegidas não são pouco mais da metade, mas o dobro do percentual (não 13, mas 27%) de uma área duas vezes maior (851 x 410), ou seja, 4 vezes mais terras do que as reservas legais, quase 8x o que ele sustenta. Pra quem é CHEFE GERAL DA EMBRAPA MONITORAMENTO POR SATÉLITE é um "erro" com algum peso...

Detalhe: sei que não deveria, mas tô dando um voto de confiança nos 20% dele sobre preservação em propriedades rurais, com base no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Desconfio que tem mutreta estatística aí também, como contabilizar áreas de preservação que deveriam ser preservadas, mas que não estão de fato, seja pela anistia de Dilma  Temer e sua base aliada, seja pela ineficiência da aplicação da lei. Além disso, o CAR é feito com base apenas na declaração dos proprietários e não tem georreferenciamento obrigatório, portanto ainda carece de validação por parte do poder público, por via remota ou por vistorias. Evaristo deu sua opinião sobre esta necessária validação de dados pra que o código florestal seja de fato cumprido: "pasmem! – algumas instituições ainda pretendem organizar uma verdadeira 'inquisição informatizada' para analisar a situação ambiental de cada um".

Miranda is on fire: diz que reserva legal, aquele percentual da sua propriedade que você não pode mexer pra fins de preservação, é tipo você comprar um ap e não poder usar 80% da área dele ¯\_(ツ)_/¯. Esse insight maravilhoso sequer é original, dado que todos os outros lobistas do agronegócio, como por exemplo a feminista-neocomunista Kátia Abreu, costumam passar vergonha com ele. Completa dizendo que o proprietário "cuida de tudo e paga impostos, mesmo sobre o que lhe é vedado usar", o que é uma mentira deslavada, dado que o ITR (o IPTU da roça) é calculado com base apenas na área "produtiva" (e também tem alto índice de sonegação porque carece de validação dos dados, Evaristo, não vamos esquecer).

O fim do artigo é dedicado a desafiar a própria lógica em uma longa explanação com números nebulosos mostrando o tanto que a agricultura preserva mais que as terras indígenas e as unidades de conservação. Ora, se isso é verdade, apenas reforça a tese de que temos um grande déficit de áreas protegidas no Brasil. De fato o único bioma bem protegido é a Amazônia, com grandes UCs e TIs; no sudeste e no sul os indígenas foram dizimados nos primeiros séculos e as paisagens rapidamente convertidas, e o que se discute hoje é como salvar o que sobrou e como evitar que o Cerrado, a Caatinga e a Amazônia tenham o mesmo destino dos Pampas e da Mata Atlântica, onde praticamente não há pra onde expandir APs. O fato de propriedades rurais abrigarem boa parte dos remanescentes só reforçam que a exigência de reservas legais e APPs em propriedades rurais é uma política acertada.

Pra terminar, Evaristo argumenta que "a responsabilidade e os custos decorrentes da imobilização e da manutenção dessas áreas recaem inteiramente sobre os produtores, sem contrapartida da sociedade, principalmente dos consumidores urbanos", o que ignora que as áreas preservadas (dentro e fora das propriedades) são o que garantem a água, os polinizadores, a ciclagem de nutrientes, a estabilidade climática e muitos outros insumos da agricultura; ignora os 200 bilhões anuais de crédito altamente subsidiado que a sociedade brasileira dá pra viabilizar o setor; e ignora a poluição do ar e da água, a concentração de renda, o trabalho escravo, o êxodo rural e todos as outras imensas externalidades que a sociedade recebe de volta, de forma difusa, sem contrapartida dos 'grandes produtores'.

E a parte mais triste é a ameaça final: "a Embrapa calculará o valor e o custo de toda essa área imobilizada". O papelão da Embrapa em 2010 se omitindo quando se discutia o novo código florestal, sua atuação orientada pro desenvolvimento de tecnologias em transgênicos com dinheiro público e o abrigo que dá a pessoas dedicadas a fazer lobby do agronegócio - essa seita parasitária que busca crescer a qualquer custo avançando sobre a destruição de direitos alheios e bens comuns - é a parte mais triste da história.

Postado originalmente no Facebook.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Leptophis ahaetulla

Agosto/16, amarrei o barco no primeiro arbusto acessível do lago Mamirauá e um dos guias locais começou a palestra. Eu geralmente só interrompia se passasse um bando de araras ou pra traduzir aquelas gírias maravilhosas do amazonês-de-beira-de-rio pro 'português', e daí pro inglês, que afinal é língua de 70% dos turistas que vão à Pousada Uacari. O papo ia longe quando fui despertado de uma longa explanação, totalmente concentrado que estava em traduzir coisas como "boiou o macaco" ou "olho da samaúma": lá da popa, do outro lado do canoão, a resenha comia solta, os guias se matavam de rir e já tavam pra cair no lago.

Parêntese: os guias locais são ribeirinhos, em sua maioria moleques com menos de 25 anos, cuja rotina de trabalho se alterna entre achar animais invisíveis ao olho humano literalmente através de um emaranhado de folhas e galhos, como se fossem meros elefantes em uma savana, com a arte de zoar os gringos - pela cor, pelo cabelo, pelo sotaque, pelo medo de absolutamente tudo que se move ou simplesmente pela cara de gringo que os gringos têm.

Naturalmente supus do que se tratava e até já guardava umas três histórias daquele passeio pra resenha da noite, quando os turistas dormem e todo mundo se amontoa em redes nos fundos da pousada. Mandei calarem a boca e tentei continuar, uma, duas, três vezes, sem sucesso. Ajoelhado na extremidade da proa e virado pra trás eu via todos os 20 turistas e guias distribuídos nas duas canoas emparelhadas e a essa altura a risada já tinha contagiado metade do grupo. Uns comentários em línguas que eu não faço a menor ideia e dedos apontando pro meu ombro direito denunciaram que eles riam em minha direção. Congelei por um instante e me virei, lentamente.

Depois daqueles 2 segundos intermináveis que você leva pra ver um animal amazônico e sua inacreditável camuflagem de folha, ou de galho, ou de ambos, focalizei essa criatura magnífica me encarando, assim, de soslaio, a menos de três palmos de distância. Me esforçando pra manter a postura de biólogo-indiana-jones que a gente espera do nosso guia naturalista amazônico e tentando não recuar mais que os mínimos 10 cm esperados de um ser humano nessa situação, soltei algum palavrão em português que fez a gringaiada desabar a rir. Os moleques já se contorciam, olhavam pros gringos e confirmavam "isneik, isneik" antes de voltar a gargalhar. Uma terceira parte do trabalho deles era rir da minha cara - pra eles, tão gringa quanto qualquer outra - além de xingar o Lucas Pratto e o Robinho só pra me ver chamar pra briga.

Leptophis ahaetulla, cobra-cipó ou cobra-papagaio, no Lago Mamirauá, Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá/AM
Paramos pra sessão de fotos da cobra-papagaio e seguimos a palestra, que se emendou a uma revoada de garças, a uma perseguição de botos cor de rosa e à fuga dos macacos brancos de cara vermelha. Foi a quinta ou sexta semana seguida que o sol se pôs e o excesso de vida amazônica não deixou a gente cobrir nem metade do trajeto planejado...

Postado originalmente no Facebook

terça-feira, 2 de maio de 2017

SP tem mais dinheiro pro meio ambiente que o Brasil

Do Observatório do Clima: "O orçamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA) foi contingenciado em 51%, de R$ 911 milhões pra R$ 446 milhões."

Do ClimaInfo: "O secretário ruralista do Meio Ambiente [de São Paulo], Ricardo Salles, alega que as áreas [de floresta que o estado quer abrir para concessão] estão dando um déficit anual de R$ 48 milhões enquanto o orçamento da sua secretaria para este ano é de R$ 1,15 bilhões."

Sim, amigos. O orçamento do Ministério do Meio Ambiente da República Federativa do Brasil é menor que o orçamento da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

Postada originalmente no Facebook

quinta-feira, 9 de março de 2017

Entrevista: Deputados Amazonenses não têm o tamanho da Amazônia

Na última sexta-feira saiu uma ótima reportagem do Amazônia Real sobre as UCs que Padilha et al. querem desafetar no sul do Amazonas, com alguns comentários meus. Agradeço a Elaíze Farias pela oportunidade. Quem quiser dar uma olhada só seguir o link. Falei do despreparo dos deputados amazonenses em entender o melhor caminho para aproveitar a floresta, e também da importância da permanência das UCs na região.

Neste post vou disponibilizar a íntegra das opiniões e informações que preparei para a reportagem, em uma análise expandida dessas questões. Segue:

Sobre a atuação da bancada do Amazonas e seus reais interesses

A opinião dos parlamentares do Amazonas é de quem desconhece as potencialidades e as riquezas do próprio estado. O que eles chamam de produção é uma visão ultrapassada de desenvolvimento. O grande potencial do estado do Amazonas reside no que o faz único no planeta, a sua biodiversidade e a cultura de seus povos tradicionais. Assim, se o estado tem algo que pode colocá-lo na vanguarda do desenvolvimento nacional e uma referência no mundo, em um momento em que urgem alternativas sustentáveis ao modelo vigente, é aliar seu patrimônio natural e o conhecimento acumulado sobre ele. Me refiro a duas coisas: a prospecção de moléculas e fármacos e no desenvolvimento  de novas tecnologias a partir dos recursos naturais únicos que o Amazonas abriga; e, claro, aos serviços ambientais que há muito tempo suas florestas produzem e que sustentam as atividades econômicas do país e de várias regiões do mundo. O Amazonas é um grande “produtor” de água, chuvas, estabilidade climática, ar puro, polinizadores, madeira, frutos, enfim, incontáveis serviços que só se gera em um ecossistema bem preservado.

Quando um representante deste estado, ou quase todos eles juntos, vêm articular políticas públicas que potencialmente trocam estes inestimáveis serviços por um modelo de produção predatório, devastador, uniformizador, onde poucas pessoas lucram, isso só diz o quanto eles não estão preparados para representarem o que é de fato o Amazonas.

Eles deveriam se unir para pensar em formas de alavancar o desenvolvimento do estado a partir da pesquisa e da inovação, do turismo ambiental e, principalmente, do reconhecimento dos serviços ambientais pelo resto do país e do mundo. Deveriam pensar em como o estado pode capitalizar sobre estes serviços que oferece e que são imprescindíveis à agricultura, às cidades, ao centros urbanos, à matriz energética e demais atividades econômicas do Brasil. Ou em como atrair pólos de desenvolvimento tecnológico, pesquisa e inovação, como incentivar que os produtos da floresta sejam conhecidos e consumidos país afora. É essa a resposta que o mundo espera do Brasil hoje, diante do colapso do clima, dos recursos naturais e dos povos tradicionais: saber usar o seu potencial.

No contexto deste imbróglio, especificamente, creio que não deveria nem haver essa discussão, esta retórica desenvolvimentista não faz sentido por dois motivos: i) três das UCs que estão sendo alteradas - as duas Florestas Nacionais e a Área de Proteção Ambiental - já permitem o uso produtivo da terra. Sua existência é compatível com a produção de madeira, alimentos e gado, desde que sigam restrições elencadas nos planos de manejo das UCs, que visa assegurar que não haja perdas ambientais significativas nestes processos e garantem uma produção mais sustentável; e ii) as terras em que foram criadas as UCs pertencem ao Ministério do Meio Ambiente, e não a produtores locais. Como é que eles imaginam que, com a retirada das UCs, elas se tornariam “produtivas”? Só se elas deixassem de ser do Ministério por algum ato posterior do governo, o que tornaria a situação ainda mais aberrante.

No fim das contas, é uma falsa disputa de “áreas produtivas x áreas preservadas”, a existência das UCs não está ocupando lugar de terrenos produtivos, apenas dando uma finalidade a terras que já são de posse do Ministério do Meio Ambiente. Os parlamentares amazonenses nesse sentido, são iguais aos do restante do Brasil: profundamente ignorantes  em temáticas ambientais e de desenvolvimento sustentável, despreparados para os desafios deste século.

Importância da presença das UCs na região

Estas UCs são parte fundamental de um grande projeto que visa formar uma barreira ao desmatamento. Esta estratégia foi bem sucedida nas fronteiras leste e sudeste da Amazônia e foi um dos fatores preponderantes para a queda em cerca de 80% do desmatamento da Amazônia brasileira entre 2004 e 2010. A presença de UCs evitou que as terras fossem ocupadas e freou a progressão do agronegócio vindo do Nordeste e Centro-Oeste brasileiro. O sul do Amazonas é hoje a mais ativa fronteira agropecuária do estado, e as cidades que abrigam as 5 UCs em disputa são protagonistas neste processo, responsáveis por mais da metade do desmatamento amazonense nos últimos anos.

Como é amplamente repercutido, a reconstrução da BR-319 e de uma rede de ramais que o projeto prevê, como a AM-366, vai abrir acesso fácil a alguns dos blocos de floresta mais protegidos da Amazônia, no norte e no extremo oeste brasileiro, e ao riquíssimo corredor florestal existente entre os rios Purus e Madeira (interflúvio Purus-Madeira). Esta região tem uma das maiores taxas de riqueza de espécie de toda a Amazônia e ainda hoje é palco do descobrimento de espécies mesmo em grupos bióticos já muito bem estudados, como mamíferos e aves. Está, em grande parte, intacto por seu isolamento. Estima-se que cerca de 90% do desmatamento na Amazônia ocorra a menos de 25km de estradas.

As UCs em disputa são cinco dentre mais de vinte criadas na região de influência da BR-319, e se localizam a 200km de distância desta, cobrindo o lado direito (norte) da rodovia transamazônica (BR-230). A transamazônica é notória indutora de ocupação e desmatamento na Amazônia, e nesta região saem dois ramais que a conectam à BR-319: a BR-174, vinda de Vilhena/RO, e a AM- 174. Assim, a presença das UCs ajuda a fechar uma brecha no arco do desmatamento e aumenta a proteção em ramais que tendem a ser reativados caso a BR-319 volte a ser plenamente transitável. Vale lembrar que a rodovia foi praticamente abandonada desde a sua criação, na década de 70, devido aos altos custos de se manter uma estrada em uma floresta tropical. E que ainda hoje discute-se a sua necessidade, devido ao baixíssimo custo do transporte hidroviário pelo rio Madeira, que faz praticamente o mesmo percurso. O uso mais intensivo de toda a rede rodoviária do sul amazonense tende a aumentar os deslocamentos regionais perto das novas UCs e, na ausência destas, aumentar as ocupações e a pilhagem de recursos naturais.

Isso é ainda mais preocupante em uma escala maior quando se considera a conexão com o trecho da BR-174 entre Manaus e Boavista, que vai até a fronteira norte de Roraima, o que na prática divide a Amazônia ao meio em sentido norte-sul, de Porto Velho/RO a Paracaima/RR. Caso isso não seja feito de forma planejada, cria-se uma cicatriz de mais de 2000 km de extensão, que tende a se tornar vetor de desmatamento para leste e para oeste a partir do centro, fragmentando definitivamente a massa florestal e abrindo caminho para a exploração de todos os locais que hoje são inacessíveis. De acordo com modelagens climáticas recentes do professor Antônio Nobre, isso poderia ser catastrófico para o regime de chuvas de todo o país e para a conservação de muitas espécies, processos ecológicos e serviços ambientais.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Desmatamento X desafetação de UCs no sul do Amazonas

Usei toda minha (des)habilidade em cartografia pra mostrar esses mapinhas aí. À esquerda, com limites em vermelho-invisível, as 5 Unidades de Conservação (UCs) que o ministro Padilha e os parlamentares do Amazonas querem reduzir no sul do estado. À direita, o mapa divulgado ontem pelo Imazon com as ocorrências de desmatamento na Amazônia entre dezembro e janeiro (http://migre.me/w6kzD).


Não são áreas próximas ou parecidas, são EXATAMENTE o mesmo lugar (só usar como referência o encontro dos rios Juruena e São Manuel, formando o Tapajós na tríplice fronteira MT/PA/AM). O município de Apuí (AM), inclusive, foi o mais desmatado de toda a Amazônia no período analisado. Ele está marcado no mapa com a estrelinha amarela. 

Os X vermelho e amarelo que eu coloquei são, respectivamente, a BR-319, que está sendo reconstruída, e a BR-230 (transamazônica), pra mostrar a relação das UCs com as BRs, estratégia fundamental pra evitar a expansão do desmatamento induzido por rodovias.

No caso das 5 UCs do Padilha, existem dois ramais que vão da região de Apuí/AM até a BR-319. O mapa só mostra um, a BR-174, marcada com X azul, atravessando a Flona Aripuanã. Estes ramais seriam reativados com a pavimentação da BR-319 e serviriam pra escoar produtos pilhados da floresta e permitir a novos invasores o acesso a áreas intactas do oeste amazônico.

Padilha já é processado por grilagem de terras no RS. Será que ele tem interesse em abrir a Amazônia pra invasores bem na fronteira do desmatamento do estado?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Mata Atlântica é igual o governo Temer: não tem notícia boa

Divulgaram essa boas notícias aí sobre a Mata Atlântica (https://goo.gl/W1E28r). Mas notícia boa da Mata Atlântica é igual notícia boa do governo Temer. O fato de que 200 mil hectares de Mata Atlântica estão se regenerando nos últimos 30 anos não é algo a ser comemorado, é apenas... uma divertida curiosidade.

Divirta-se você também imaginando porque a mata atlântica está se regenerando aleatoriamente Brasil afora. Um tiozinho brigou com a esposa por causa das vacas e jurou que nunca mais ia mexer com esses trem de pasto, só de raiva? Um agricultor bem velhinho morreu e os herdeiros, que realizaram o sonho do pai de ir pra faculdade, não querem nem saber de mexer com mato? O Sebastião Salgado ficou milionário e resolveu fazer uma ação bonitinha na fazenda irrelevante da família dele com patrocínio das mesmas empresas que queimaram a floresta primária de todo o leste de Minas Gerais em forno de fundir minério de ferro?

Claro que você pode incluir os projetos de reflorestamento, Pagamento por Serviços Ambientais, RPPNs, mosaicos, planos municipais da mata atlântica, recomposição de APPs e afins, iniciativas de organizações espetaculares como a SOSMA e pessoas igualmente espetaculares, que conseguiram na raça avanços pontuais em diferentes lugares. Grande esforço dos estados, do governo federal, programas, projetos de reflorestamento que dêem conta do tamanho do buraco em que o bioma está enfiado, não adianta perder tempo procurando.

De divertida a situação da Mata Atlântica não tem nada. A matéria omite mas o desmatamento medido pela mesma instituição, ou seja, provavelmente com os mesmos métodos e no mesmo período, foi pelo menos 9 vezes maior (https://goo.gl/YqESXB), o que torna o resultado líquido muito, mas muito, mas muito negativo. Com a outra desvantagem de que o desmatamento não é randômico como a regeneração, ele é muito bem organizado pela mineração e pelo agronegócio (https://goo.gl/9xi1K9). A carência de notícias boas é tão grande que estamos divulgando a regeneração bruta sem descontar o desmatamento.

Já o outro dado de que o desmatamento caiu 83% em 30 anos e que 7 estados conseguiram levá-lo a zero, bem, isso não é muito mais do que o esperado. Restam míseros 12,5% de florestas em extrema fragmentação segundo o mesmo levantamento, a margem pra desmatamento hoje é baixa e obviamente a taxa histórica não se sustenta. Florestas são finitas. A lei da mata atlântica e os planos municipais são avanços muito importantes e restringem o desmate, mas convenhamos, estamos muitas décadas atrasados, o momento de preservar era o estágio de 50, 80 anos atrás. Mais do que preservar, o urgente é restaurar, restaurar, restaurar, restaurar, restaurar, porque se matar pra manter o percentual atual não vai resolver o problema. Já estamos há algumas décadas numa corrida alucinada contra o relógio, cada dia sem restaurar diminui a eficiência da restauração, as populações não restauradas estão sumindo, o pool gênico está se deteriorando com a falta de restauração, a megafauna que não foi restaurada está praticamente extinta do bioma não restaurado, os fragmentos minúsculos definham até se tornarem inúteis na falta de conectividade. Vou repetir restaurar mais uma vez nesse fim de parágrafo pra ver se grava. Restaurar.

Não digo que é fácil nem que os esforços são mal direcionados. Quem tá nessa luta faz o que pode fazer, contando apenas com as próprias forças.

Só pra ficar mais didático: o Brasil tem o compromisso de proteger 17% do bioma em reservas até 2020, e obviamente seria bacana ter florestas também fora das reservas; restam 12,5% da MA, sendo menos de 2% em reservas (não tô contando APA tá gente, por motivos óbvios); de 2009 pra cá, o desmatamento (bruto, em área) aumentou - diminuiu sim em relação a 1985, mas aumentou em relação a 2009. Ou seja, precisamos no curto prazo zerar virtualmente o desmatamento e restaurar no mínimo uns 10% da área e transformar quase tudo que restou em reservas, o que é uma utopia bem grande. Isso pra ter o mínimo do mínimo do mínimo. Tão acompanhando? 10%.

A regeneração comemorada nesta matéria, acumulada em trinta longos anos, quase o tempo que o cruzeiro levou pra ganhar seu primeiro campeonato brasileiro, corresponde a... 0,18%. Zero vírgula dezoito porcento.
(texto originalmente postado no Facebook)

Pegadinha na Mata Atlântica