quinta-feira, 20 de outubro de 2016

O último pôr do sol

Essa foto estourada, esquisita, sem cor é uma das mais especiais da minha vida. Foi feita há exatos dois anos, enquanto eu passarinhava sem entender de pássaros e fotografava sem entender de fotos, com o Daniel Teixeira. Continuo sabendo muito pouco de ambos.

Pôr do sol no Rio Doce, antes da lama

Mas era uma passarinhada fotográfica ao entardecer dentro do rio Doce, cercado de sapucaias floridas. Aquele que completa, daqui duas semanas, 1 ano de extinção. Passamos uns 5 dias em um alojamento construído em uma ponte sobre o rio, que nos permitia ouvir e observar dia e noite.

A água não era lá muito funda, por conta do assoreamento severo que o rio enfrentava e provavelmente pela redução da vazão. Ambos causados pelo desmatamento desenfreado da bacia para alimentar as siderúrgicas mineiras ao longo de todo o século XX. Assim, a exploração do ferro matou o rio Doce pouco a pouco pela destruição das florestas mineiras ao longo de várias décadas, pra extirpá-lo de vez no último ano. É possível que algumas ou várias características físicas e biológicas do rio sejam recuperadas nas próximas décadas com um grande esforço de restauração (que não tem nem sinal de que vá acontecer), mas é claro como as águas do rio naquele dia que ele nunca mais será o mesmo. Nunca mais alguém terá a chance de retratar, de maneira decente, o pôr do sol espetacular que nós vivemos. Terão que se contentar esta foto (o Daniel acho que nem tem, já que deixou a câmera cair na água tentando pegar um peixe, o infeliz).

Naquela tarde vimos grandes grupos de dourados, pegadas de antas e onças-pardas, macuco, tiribas-grande e muitas, muitas outras espécies de aves. Todas ali obviamente por causa da água. Algumas destas espécies só tinham/têm registros mineiros recentes praquele trecho, que margeia o maior bloco (resto) de mata atlântica do estado, o Parque Estadual do Rio Doce (PERD). Penso nelas sempre que me lembro o que o misto de negligência ambiental, desprezo pelo licenciamento, corrupção e ganância ocasionaram ao rio. Caminhamos por horas com a água na cintura e observando a exuberância das margens do PERD, sempre na expectativa de que algo muito raro pulasse na nossa frente, como acontecera nas visitas anteriores, com o namoro das antas, ou o encontro com os muriquis ou quando topamos o fantasma jacu-estalo dulcis, que nos rendeu uma publicação, duas palestras e algumas cervejas. O PERD é especial assim... Não sei como está hoje, não tive tempo nem coragem de ir conferir, mas sei que é uma experiência que não volta mais.

Me despeço desta sessão nostálgica com a descrição registrada pelo naturalista francês Auguste Saint-Hilaire, que andou de canoa nesse mesmo local em 1818, ou seja, 200 anos atrás, e deixou o seguinte registro: 

"O rio Doce corria majestoso entre as escuras florestas que o margeiam. Completa calma reinava em toda a natureza e o silêncio do ermo era apenas perturbado pelo canto de umas pequenas cigarras e pelo barulho dos remos de que se serviam meus canoeiros. Solidões vastas assim têm qualquer coisa de importante e eu me sentia humilhado diante desta natureza tão possante e austera. Minha imaginação se assustava, quando eu pensava que as matas imensas que me cercavam se estendiam para o norte, muito além do rio Jequitinhonha, que elas ocupam toda a parte leste da província de Minas Gerais; que cobrem, sem qualquer interrupção, as do Espírito Santo, e do Rio de Janeiro, parte oeste da província de São Paulo, completamente a de Santa Catarina, o norte e o oeste da província do Rio Grande do Sul e que além das missões, irão, possivelmente, unir-se às do Paraguai setentrional".

Atualmente estima-se que restem entre 8 e 12% da Mata Atlântica original.
(originalmente postado no Facebook)