Essa foto estourada, esquisita, sem cor é uma das mais especiais da minha vida. Foi feita há exatos dois anos, enquanto eu passarinhava sem entender de pássaros e fotografava sem entender de fotos, com o Daniel Teixeira. Continuo sabendo muito pouco de ambos.
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Pôr do sol no Rio Doce, antes da lama |
Mas era uma passarinhada fotográfica ao entardecer dentro do rio Doce, cercado de sapucaias floridas. Aquele que completa, daqui duas semanas, 1 ano de extinção. Passamos uns 5 dias em um alojamento construído em uma ponte sobre o rio, que nos permitia ouvir e observar dia e noite.
A água não era lá muito funda, por conta do assoreamento severo que o rio enfrentava e provavelmente pela redução da vazão. Ambos causados pelo desmatamento desenfreado da bacia para alimentar as siderúrgicas mineiras ao longo de todo o século XX. Assim, a exploração do ferro matou o rio Doce pouco a pouco pela destruição das florestas mineiras ao longo de várias décadas, pra extirpá-lo de vez no último ano. É possível que algumas ou várias características físicas e biológicas do rio sejam recuperadas nas próximas décadas com um grande esforço de restauração (que não tem nem sinal de que vá acontecer), mas é claro como as águas do rio naquele dia que ele nunca mais será o mesmo. Nunca mais alguém terá a chance de retratar, de maneira decente, o pôr do sol espetacular que nós vivemos. Terão que se contentar esta foto (o Daniel acho que nem tem, já que deixou a câmera cair na água tentando pegar um peixe, o infeliz).
Naquela tarde vimos grandes grupos de dourados, pegadas de antas e onças-pardas, macuco, tiribas-grande e muitas, muitas outras espécies de aves. Todas ali obviamente por causa da água. Algumas destas espécies só tinham/têm registros mineiros recentes praquele trecho, que margeia o maior bloco (resto) de mata atlântica do estado, o Parque Estadual do Rio Doce (PERD). Penso nelas sempre que me lembro o que o misto de negligência ambiental, desprezo pelo licenciamento, corrupção e ganância ocasionaram ao rio. Caminhamos por horas com a água na cintura e observando a exuberância das margens do PERD, sempre na expectativa de que algo muito raro pulasse na nossa frente, como acontecera nas visitas anteriores, com o namoro das antas, ou o encontro com os muriquis ou quando topamos o fantasma jacu-estalo dulcis, que nos rendeu uma publicação, duas palestras e algumas cervejas. O PERD é especial assim... Não sei como está hoje, não tive tempo nem coragem de ir conferir, mas sei que é uma experiência que não volta mais.
Me despeço desta sessão nostálgica com a descrição registrada pelo naturalista francês Auguste Saint-Hilaire, que andou de canoa nesse mesmo local em 1818, ou seja, 200 anos atrás, e deixou o seguinte registro:
"O rio Doce corria majestoso entre as escuras florestas que o margeiam. Completa calma reinava em toda a natureza e o silêncio do ermo era apenas perturbado pelo canto de umas pequenas cigarras e pelo barulho dos remos de que se serviam meus canoeiros. Solidões vastas assim têm qualquer coisa de importante e eu me sentia humilhado diante desta natureza tão possante e austera. Minha imaginação se assustava, quando eu pensava que as matas imensas que me cercavam se estendiam para o norte, muito além do rio Jequitinhonha, que elas ocupam toda a parte leste da província de Minas Gerais; que cobrem, sem qualquer interrupção, as do Espírito Santo, e do Rio de Janeiro, parte oeste da província de São Paulo, completamente a de Santa Catarina, o norte e o oeste da província do Rio Grande do Sul e que além das missões, irão, possivelmente, unir-se às do Paraguai setentrional".
Atualmente estima-se que restem entre 8 e 12% da Mata Atlântica original.
(originalmente postado no Facebook)